segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Óscar e a senhora cor-de-rosa

Como sabem, eu faço voluntariado no IPO e, neste momento, estou no serviço da pediatria.
Por causa disto, a minha querida irmã recomendou-me um livro que fala sobre este mesmo assunto: cancro e voluntariado. (Não tenham medo de dizer a palavra cancro, ninguém fica com cancro só por dizê-la.)
O livro fala sobre a amizade que se estabelece entre uma voluntária - já com alguma idade, a Vovó-Rosa - e um menino na fase terminal do seu cancro - uma leucemia.
A voluntária pede ao menino para escrever cartas a Deus e que cada dia equivalesse a 10 anos. São 12 dias, logo 120 anos, e o menino acaba por viver toda uma vida durante aquele pequeno periodo de tempo.
O livro lê-se numa noite e eu recomendo-o vivamente.

Vou só aqui deixar algumas passagens que gostei mais e que me deixaram a pensar em tantas outras coisas. No livro, cada capitulo é uma carta que ele escreve a Deus.

"- Mas por que é que eles não me dizem simplesmente que vou morrer?
Então o Bacon fez o que toda a gente faz no hospital: ficou surdo. Se dizes «morrer» num hospital, ninguém ouve. É certo e sabido que aparece uma corrente de ar e se começa a falar de outra coisa. Fiz o teste com toda a gente. Excepto com a Vovó-Rosa.
Então esta manhã, quis ver se também ela ficava dura de ouvido nesse momento.
-Vovó-Rosa, tenho a impressão de que ninguém me diz que vou morrer.
Ela olha para mim. Irá reagir como os outros? Por favor, Estranguladora de Languedoc, resiste e conserva os ouvidos!
-Por que é que queres que te digam se tu o sabes, Óscar?
Uff, ela ouviu.
-Vovó Rosa, tenho a impressão de que inventaram um hospital diferente deste que existe de verdade. Fingem que vimos ao hospital só para nos curarmos. Quando também aqui vimos para morrer.
-Tens razão, Óscar. E acho que que cometemos o mesmo erro em relação à vida. Esquecemo-nos de que a vida é frágil, quebradiça, efémera. Todos fingimos que somos imortais.
-A minha operação fracassou, Vovó-Rosa?
A Vovó-Rosa não respondeu. Era a sua forma de dizer sim. Quando se certificou de que eu tinha percebido, aproximou-se e perguntou-me num tom suplicante:
-Claro que não te disse nada... Juras?
- Está jurado.
Calámo-nos um instantinho, a remoer todos estes pensamentos novos."


"-E por que é que haveria de escrever a Deus?
-Irias sentir-te menos só.
-Menos só com alguém que não existe?
-Faz com que ele exista.
Debruçou-se sobre mim.
-Cada vez que acreditares nele, existirá um bocadinho mais. Se persistires, existirá completamente. Então, vai fazer-te bem.
-O que é que eu lhe posso escrever?
-Confia-lhe os teus pensamentos. Os pensamentos que não dizes são pensamentos que pesam, que se incrustam, que são um fardo, que te imobilizam, que tiram o lugar às ideias novas e que te apodrecem. Vais transformar-te numa lixeira de velhos pensamentos malcheirosos, se não falares.
-Ok."


"-Os teus pais nunca te falaram de Deus, Óscar?
-Esqueça. Os meus pais são uns estúpidos.
-Claro. Mas eles nunca te falaram de Deus?
-Falaram. Só uma vez. Para dizerem que não acreditavam nele. Aqueles só acreditam no Pai Natal.
-São assim tão estúpidos, Óscar querido?
-Nem pode imaginar! No dia em que voltei da escola e lhes disse que valia mais acabar com a farsa, que eu sabia, como todos os meus amigos, que o Pai Natal não existe, parecia que caíam das nuvens. Como estava fulo por ter passado por cretino no pátio do recreio, juraram-me que nunca me quiseram enganar e que eles julgavam, sinceramente, que o Pai Natal existia, e que estavam muito desiludidos, veja lá, muito desiludidos por descobrirem que não era verdade! Dois autênticos tarados, Vovó-Rosa, pode crer!
-Portanto eles não acreditam em Deus?
-Não.
-E isso não te intrigou?
-Se me interessasse pelo que pensam os imbecis não tinha tempo para o que pensam as pessoas inteligentes."


"A Vovó-Rosa vestiu-me como se partíssemos para o Pólo Norte, tomou-me nos braços e conduziu-me à capela que se situa ao fundo do parque do hospital, para além dos relvados cobertos de gelo. Bem, não vale a pena explicar-te onde é, visto ser a tua casa.
Provocou-me um choque ver a tua estátua, ou seja, ver o estado em que estavas, quase todo nu, magrinho na tua cruz, com feridas por todo o lado, a cabeça a sangrar sob os espinhos e já sem conseguir segurar-se no pescoço. Fez-me pensar em mim. Revoltou-me. Eu, se fosse Deus, como tu, não me teria deixado apanhar.
-Vovó-Rosa, seja sincera, a Vovó que é uma lutadora, que foi uma grande campeã, não vai acreditar nisto!
-Porquê, Óscar? Darias mais crédito a Deus se visses um culturista com o bife todo trabalhado, o músculo saliente, a pele oleada, o cabelo cortado à escovinha e o mini-slip a armar ao pingarelho?
-Bem...
-Pensa um pouco, Óscar. De que é que te sentes mais próximo? De um Deus que não se aflige com nada ou de um Deus que sofre?
-Do que sofre, claro. Mas se eu fosse ele, se fosse Deus, se, como ele, tivesse meios para isso, teria evitado sofrer.
-Ninguém pode evitar sofrer. Nem Deus nem tu. Nem os teus pais nem eu.
-Está bem. Mas porquê sofrer?
-Essa é que é a questão. Há sofrimento e sofrimento. Olha melhor para o rosto dele. Observa. Tem ar de quem sofre?
-Não. É curioso. Não parece ter dores.
-Aí tens. É preciso distinguir dois penares, Óscar querido, o sofrimento físico e o sofrimento moral. O sofrimento físico temos de o suportar. O sofrimento moral, escolhêmo-lo.
-Não percebo.
-Se te enfiassem pregos nos pulsos ou nos pés, não podes fugir à dor. Tens de suportar. Em contrapartida, com a ideia de morrer, não és obrigado a sentir dor. Não sabes o que isso é, portanto depende de ti.
-Conhece pessoas que ficam contentes com a ideia de morrer?
-Sim, conheço. A minha mãe era assim. No seu leito de morte, sorria de avidez, estava impaciente, tinha pressa de descobrir o que se ia passar.
Já não tinha argumentos. Como me interessava saber a continuação, esperei um bocadinho enquanto reflectia no que ela estava a dizer.
-Mas a maior parte das pessoas não tem curiosidade. Agarram-se ao que têm, como o piolho à orelha de um careca."


"A Peggy Blue e eu fartámo-nos de ler o «Dicionário Médico». É o seu livro preferido. Está apaixonada pelas doenças e interroga-se sobre quais poderá vir a ter mais tarde. Eu fui ver as palavras que me interessavam: «Vida», «Morte», «Fé», «Deus». Acreditas que não estavam lá? Nota bem, isso prova desde logo que não são doenças, nem a vida, nem a morte, nem a fé, nem tu. O que não deixa de ser uma boa notícia. No entanto, num livro tão sério, devia haver respostas às perguntas mais sérias, não te parece?
-Vovó-Rosa, tenho a impressão de que, no «Dicionário Médico», só há coisas particulares, problemas que podem acontecer a este ou àquele sujeito. Mas não estão lá as coisas que nos dizem respeito a todos: a Vida, a Morte, a Fé, Deus.
-Talvez fosse preciso um «Dicionário de Filosofia», Óscar. Porém, mesmo que chegues a encontrar as ideias que procuras, continuas a correr o risco de te desiludires. O «Dicionário» propõe várias respostas muito diferentes para cada noção.
-Como é que isso é possível?
-As perguntas mais interessantes permanecem perguntas. Encerram um mistério. A cada resposta devemos acrescentar um «talvez». Só as perguntas sem interesse têm uma resposta definitiva.
-Quer dizer que para «Vida» não há solução?
-Quero dizer que para «Vida» há muitas soluções, isto é, não há solução nenhuma.
-O que eu penso, Vovó-Rosa, é que não há solução para a vida excepto viver."


"Querido Deus

Obrigado por teres vindo.
Escolheste o melhor momento porque eu não me estava a sentir bem. Além disso talvez estivesses chateado por causa da minha carta de ontem...
Quando acordei, pensei que já tinha noventa anos e virei a cara na direcção da janela para ver a neve.
E nesse momento pressenti que vinhas. Era de manhã. Eu estava sozinho na Terra. Era tão cedo que os pássaros ainda dormiam, que até a enfermeira da noite, a senhora Ducru, dormitava um pouco e tu tentavas criar a madrugada. Custava-te muito mas insistias. O céu empalidecia. Enchias o ar de branco, de cinzento, de azul, empurravas a noite, reacendias o mundo. Não paravas. Foi nessa altura que percebi a diferença entre tu e nós: tu és o tipo infatigável! Aquele que não se cansa. Sempre ao trabalho. Agora o dia! Agora a noite! Agora a Primavera! Agora o Inverno! Agora a Peggy Blue! Agora o Óscar! Agora a Vovó-Rosa! Que saúde!
Percebi que estavas aqui. Que me contavas o teu segredo: olha o mundo cada dia como se fosse pela primeira vez.
Então segui o teu conselho e esforcei-me. A primeira vez. Contemplava a luz, as cores, as árvores, os pássaros, os animais. Sentia o ar correr pelas narinas produzindo a respiração. Ouvia as vozes que se elevavam no corredor como na abóboda de uma catedral. Sentia que estava vivo. Estava arrepiado de pura alegria. A felicidade de existir. Estava maravilhado.
Obrigado, Deus, por teres feito isso por mim. Era como se me pegasses na mão e me levasses ao centro do mistério para contemplar o mistério. Obrigado.

Até amanhã, beijinhos
Óscar.

P.S. O meu desejo: podes repetir a cena da primeira vez com os meus pais? Acho que a Vovó-Rosa já a conhece. E depois também com a Peggy, se tiveres tempo."


"Hoje tenho cem anos. Tal como a Vovó-Rosa. Durmo muito mas sinto-me bem.
Tentei explicar aos meus pais que a vida é um presente engraçado. Ao princípio, sobrestimamo-lo: julgamos ter recebido a vida eterna. Depois, sobestimamo-lo, achamo-lo uma porcaria, demasiado curto, quase nos sentiríamos prontos a deitá-lo fora. Por fim, apercebemo-nos de que não era um presente, mas apenas um empréstimo. Então tentamos merecê-lo. Eu, que tenho cem anos, sei do que falo. Quanto mais envelhecemos, mais devemos ter bom gosto para apreciar a vida. Devemos tornar-nos refinados, artistas. Qualquer imbecil pode gozar a vida aos dez ou vinte anos, mas aos cem, quando já não nos podemos mexer, é preciso usar a inteligência."

7 comentários:

  1. Anónimo12:05:00

    Eu admiro-te!! Na altura em que ia visitar o meu pai ao IPO, falei algumas vezes com voluntárias sobre o trabalho delas.. Quando fui com elas ao serviço pediátrico tive a certeza que nunca iria conseguir fazer aquilo com crianças.. custou-me imenso segurar as lágrimas à frente das crianças mas cá fora não aguentei! Admiro-te!!

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    1. Até agora, só tenho largado sorrisos! :)
      E conseguido que as crianças libertem outros sorrisos e gargalhadas! :)

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    2. Anónimo15:01:00

      Mustache a contribuir para a felicidade das crianças :D

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  2. Crianças e cancro não combinam. Seria incapaz de fazer o que fazes.

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    1. A verdade é que nada combina bem com cancro...
      Fazer isto, deixa-nos com outra visão das coisas..

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  3. Eu não o conseguiria, também, por isso devo felicitar-te por o conseguires! É admirável! :)

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    1. Como eu, existem muitas outras pessoas. A Liga Portuguesa Contra o Cancro tem cerca de 4000 voluntários! :)
      E há sempre outras coisas em que as pessoas podem participar sem estar em contacto direto com a doença.

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Dá a tua aparadela..